Simone de Oliveira: "Escondo-me atrás de uma mulher forte"

Criança "sossegada", jovem de causas e de um só amor: Varela Silva. Cantora e actriz para quem os afectos valem mais do que prémios ou palmas. No rosto abriga as rugas, as "rasteiras feias" da vida. Na alma traz a luta "nem sempre fácil" de viver sozinha e o peso de quem nunca cedeu. Quer ser recordada como a avó que ensinou <em>bowling</em> aos netos. Ela é simplesmente... Simone
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Na novela Remédio Santo, em exibição na TVI, dá vida à imponente Graça Monforte. Que balanço faz desta interpretação? Onde se inspirou para criar esta mulher?

A inspiração é na própria história da novela. Isso de ir à procura da personagem... Se me dissesse que teria de interpretar o papel de uma prostituta, aí sim... A Graça Monforte é uma mulher austera, severa e que vive preocupada em defender o nome da sua família e a imagem desta em Viseu. E, diga-se, a telenovela é uma coisa que é para consumir e que deve ser bem feita, mas não é Shakespeare.

Que desafios lhe trouxe este papel enquanto actriz?

Ter de construir um ar austero e o não poder falar tanto com as mãos (risos). E também o ter de controlar as expressões da cara... Mas tudo isto são inserções de quem dirige os actores e todos nós temos de receber indicações para seguir um fio condutor.

E tem sido uma tarefa fácil para si controlar as mãos e o rosto?

Tenho tentado controlar e tenho essa preocupação. Bom, confesso que não mexer a cara custa-me um bocadinho! Eu sou toda de mais, percebe o que é? (risos) E, por isso, tenho de puxar algumas coisas para trás.

A participação em Remédio Santo tem levado a Simone até Viseu. Como tem sido o contacto com a cidade?

O que posso dizer? O hotel é uma coisa maravilhosa, come-se muito bem, o ar é maravilhoso! Ir a Viseu de manhã e voltar à noite é algo que eu não faço.

Alguns actores já denunciaram ser muito cansativo fazer tantas viagens...

Eu não sou das pessoas que tenho gravado mais em Viseu. As minhas colegas Rita [Pereira] e Margarida [Marinho] têm estado por lá muito mais... Credo, e nada é assim tão trágico! Não andamos lá a cavar! (risos) Sinto-me óptima. Só detesto que chova... aí, sim, fico logo mal-humorada. Mas rapidamente chamo a minha "Mariazinha", o meu alter ego, e digo-lhe: "Porta-te bem!" E depois, passado uns 15 minutos, passa-me! Sei lá, a vida tem-me dado coisas tão boas...

O autor António Barreira viu a novela Meu Amor (TVI) ser distinguida com um Emmy. Gostaria de sentir o peso de um prémio nas mãos?

Dispenso. Deixo isso para os outros. Se for atribuído um prémio por esta novela, acho que é um prémio de todos. Se não tiver, é mais um trabalho que se fez, uma experiência. Não vivo dependente de prémios, nunca vivi.

A Graça Monforte é uma matriarca que gosta de controlar o que se passa na família e nos negócios. E a Simone? Também tem a sua veia de "vigilante"?

Ela tem esse lado mas também tem um outro e que é o da doideira e esse eu também tenho! (risos)

E em que se traduz a sua loucura?

Em ser livre. Gosto de sair à noite, de me divertir, de beber um copo. No dia em que não for isto vou para casa fazer a tal renda. Mas, respondendo à pergunta anterior, a vida dos meus filhos e dos meus netos é deles, eles têm a deles e eu tenho a minha. Não controlo, mas estou muito atenta. E normalmente tenho as mãos por baixo e o coração muito aberto. Se quero ser respeitada tenho de respeitar os outros. E se há coisa que falta neste exacto momento, em todos os capítulos, profissões e áreas, é precisamente respeito.

Porque tem essa visão?

As pessoas não se respeitam, digladiam-se! Se um tem um carro, o outro tem de ter dois...

E como se pode reconquistar esse legado do respeito?

Acho que cada pessoa deve olhar para si própria e pensar no que vale a pena ir à procura. Esta geração quando quer sabe ser respeitadora. Há alguns tipos de rebeldia que não conduzem a lado algum.

Como por exemplo?

Há uma rebeldia barata... A rebeldia quando existe tem de ser por um motivo muito forte: amizade, sobrevivência, dar as mãos uns aos outros. Agora dar duas bofetadas só para aparecer no Facebook? Aliás, eu detesto o Facebook!

Mas a Simone tem um perfil activo...

Sim, é verdade. E tenho lá amigos, mas acima de tudo gosto de olhar para as pessoas, tocar. Já reparou? Já ninguém escreve cartas de amor e é tão bom escrever e ter o retorno de uma carta. As pessoas demitiram-se de tudo isso porque a vida é cansativa, porque o metro parou... Mas se as pessoas tentassem, nem que fosse durante dez minutos, dizer "eu gosto de ti", se enviassem um bilhete ou fizessem um carinho...

Como olha hoje para as "rebeldias" que protagonizou no passado?

As minhas rebeldias sempre foram em função de injustiças e pela raiva que ainda tenho por as pessoas não serem mais amigas, mais colaborantes. Era preciso olhar um bocadinho mais para o lado, só isso... E as pessoas olham muito pouco para o lado. Não estou aqui a dizer que toda a gente é assim...

A somar 50 anos de carreira, pergunto: qual foi a sua maior "travessia no deserto"?

A minha maior travessia foi perder a voz. Foram três anos e eu era muito nova. As travessias que vivi foram mais dentro da minha alma em relação às pessoas que perdi, o meu pai, a minha mãe. Tive travessias de saúde complicadas, mas foram travessias que fui remando. As outras, por razões que eu não sei explicar, não me bateram tanto à porta...

Da rapariga que se casou aos 19 anos e que se divorciou, aos episódios de doença oncológica, à perda do seu marido, o actor Varela Silva, e de outros entes queridos, qual foi a maior das batalhas?

Tantas... O primeiro problema oncológico apareceu aos 50 anos, depois veio a colocação de uma prótese na anca... Quer mais? Mas chamo a tudo isso conjunturas da vida. Há de certeza pessoas que sofreram e lutaram mais do que eu. Fui lutando e conseguindo vencer... Eu ponho muito de teatrice para enfrentar as horas complicadas e, sim, já tive algumas. Tenho esta genica que não sei onde a fui buscar.

Não a herdou de ninguém?

Eu tive uma avó que amei muito, era a minha avó Jane. Vivi com ela até aos 10 anos e dizem que ela era uma mulher de grande têmpera. Já a minha mãe era uma funcionária pública, o seu sonho era estar em casa. O meu pai não era português e era um homem de trabalho. A minha mãe chamava-me a "ponga songa" porque eu era sossegada. Mas de repente deu-me uns nervos! (risos)

E isso aconteceu com que idade?

Dos 19 anos para os 20 anos. Foi aí que dei uma volta. Sabe, costumo dizer isto várias vezes: eu tinha uma enxada que era a minha voz. E depois, junto a mim, tinha uma outra caixa com outras enxadinhas [a representação, o jornalismo] que fui descobrindo de experiência em experiência...

Agarrou outras "enxadinhas" para combater a perda da voz...

Ainda me lembro do dia em que fui enviada como jornalista para a Maternidade Alfredo da Costa, [Lisboa]. Ia fazer um trabalho sobre a diabetes no parto e quando chego lá perguntam-me: "Então, Simone, vem cantar o quê?" Se foi duro? Foi. Se tudo isto magoou? Caramba, como magoou! Mas tenho uma capacidade de resistência fora do comum. É um facto e reconheço. Se me perguntar porquê? Não lhe sei dizer.

Foi uma resistência que construiu por necessidade?

Sim, talvez a vida me tenha posto à prova várias vezes e, exactamente por me ter posto à prova, eu acabei por ir à procura das coisas de que precisava. Fazia falta a sopa e a batata, eu tinha filhos... Naquela altura não fazia falta a caipirinha ou o whisky de que tanto gosto. (risos)

Sente que pregou uma rasteira à vida?

Bom, pode dizer-se que por ter dado a volta... sim, preguei! (gargalhadas) A vida julgava que eu ia por um caminho e eu fui por outro. É evidente que a vida me pregou rasteiras feias, mas fá-lo a toda a gente. Há alguma razão para existirem crianças com cancro aos 3 e 4 anos?

Esse é um medo que a acompanha e de que fala sempre que dá uma entrevista...

Sim, é verdade. Tenho uma grande dificuldade em aceitar. Eu que sou das batalhas todas, não me peçam para ir a hospitais onde estejam essas crianças porque eu desfaço-me toda... É uma coisa que me transcende.

Esse medo faz de si uma avó mais ansiosa, mais preocupada com os netos?

Não, não, não! Eu sou a "avó". Nem sou a "avozinha" nem a "vovó". Não sou nada mais ansiosa. Eles têm um pai e uma mãe para cuidar deles, não se pode viver com essa ansiedade. Os meus netos escrevem-me e dizem: "A minha avó é a maior do mundo." E depois há aqueles momentos em que me dizem: "Ó avó, podes pôr-me dinheiro no telemóvel?" ou "Ó avó emprestas-me o carro?" E é esse lado que eu não quero perder. Posso não ter a salva de palmas - que tenho tido, felizmente -, mas tenho outras salvas de palmas que são tão ou mais importantes do que aquelas que recebi no Coliseu dos Recreios.

Quais são presentemente os seus maiores prazeres na vida?

Adoro estar com os amigos, comer sardinhas assadas em Setúbal. Gosto muito de ouvir um grande concerto, de ouvir a Kátia Guerreiro, Ana Moura, Camané... Gosto muito de ler, leio muito.

Disse numa entrevista: "Tenho levado a minha vida, desde os 20 anos, a ter força". Ainda continua a fazê-lo?

É uma verdade e repito. Em muitas ocasiões faço muita força e, às vezes, estou cansada da força que faço. Não é fácil aprender a viver sozinha, não é nada fácil. Não é fácil não ter uma pessoa... Chega-se a casa e pousa-se o prémio, tiras as flores e depois estás só tu ali diante do espelho. E é ali que olhas só para a "Mariazinha". Às vezes não é muito fácil.

Não? A Simone tem uma imagem de mulher tão independente...

Sim, não é fácil. Mas vivo e vivo bem. Aliás, deito-me com uma grande serenidade, mas não é fácil. Faz-me imensa tristeza que tanta gente morra sozinha no nosso país. Tenho muita pena de ter perdido a minha mãe quando ainda era muito nova... Era capaz de comer pedras e dormir no chão só para ter a minha mãe ao meu lado. [morde os lábios e emociona-se]

Ainda conversa com a sua mãe?

Meu Deus! E de que maneira... Digo-lhe: "Ai, acode à tua filha!" (risos) É uma forma de rezar um bocadinho, de forma irónica, infantil, patética, mas talvez seja uma forma de rezar muito honesta. Rezo e peço muito, não para mim mas para os outros. A minha mãe disse-me uma coisa que nunca mais esqueci: "Eu vou-me embora, mas nunca te vou deixar. Vou andar sempre ao pé de ti." Ela não voltou a ver-me cantar... e isso foi uma das coisas de que me lembrei quando cheguei a casa depois de receber o Globo de Ouro. Pensei: "Caramba, como tu devias ter gostado de me ver chegar até aqui!". Eu sei que ela sabe e que ela vê, isso tenho a certeza.

Esconde-se atrás de uma mulher forte?

[Pausa longa]. Vamos ser honestos. Sim, às vezes. Não digo que não. Repare: no dia em que morreu a minha mãe, eu saí da igreja e fui fazer uma comédia; no dia em que morreu o meu pai, fiz revista no Teatro Maria Vitória. E, portanto, o que é que acha? Não é do meu feitio chorar. Não é. Se já chorei sozinha? Credo, andava de barco! Mas eu só ando assim durante uns dois ou quatro dias porque depois fico cansada de andar mal. Não tenho paciência.

Ser actriz ajudou a fintar as emoções?

Diria que cantar ajuda a fintar as emoções. Através das palavras dos poetas dizemos o que queremos e não o que queremos.

Quem foi o grande mestre da sua vida?

A própria vida. É claro que tive pessoas que me ensinaram muito... Mas o meu pai, o Varela, o meu filho e os meus amigos são os meus grandes pontos de referência.

Perdeu cedo o seu marido, o actor Varela Silva. Sentiu vontade de voltar a amar?

Fiquei viúva muito nova, mas amar daquela maneira? Não. Sinceramente não. Vivi 23 anos com o Varela e quando ele morreu eu tinha 50 anos e era realmente uma mulher muito nova... Os quatro anos a seguir foram para esquecer.

A música é um outro amor que sempre a acompanhou. Está a preparar um álbum...

Sim, mas já decidi que só vou começar a pensar nisso no final do ano. Temos algumas canções mais ou menos escolhidas, mas não iremos descobrir nenhuma pólvora musical.

E será o último, como já disse?

Sim, disco não haverá mais. Há sete anos que não gravo.

Consegue imaginar-se sem o som das palmas, da música?

Há dez anos comecei a pensar que era preciso viver sem palmas e tenho outras. Tudo na vida começa e acaba. E tenho tido a sorte de ter estado sempre na crista da onda.

Vive bem com o avançar da idade?

A velhice é uma coisa irreversível e as pessoas perdem a expressão. Eu sei que me agoniaria pensar: "Onde é que eu estou?"; "Onde está a minha expressão, a minha alma?" Um dia, as palmas e o palco acabam e onde fica o resto? E é esse "resto" que não troco por nada.

Encara a morte com...

Ai, não me apetece nada morrer! (risos) Vou fazer um contrato com o São Pedro e vou pedir-lhe mais uns 20 anos. Gosto muito de viver. Se tiver de ir, vou contrariada.

Teme-a? Respeita-a?

Acho que se deve ter uma morte digna. Para viver mal, não. Para ficar cá a sobrecarregar os outros, não ter lucidez... deve ser algo horrível. Peço à divina providência que não me dê isso como resto de vida. É terrível.

Artur Agostinho disse "Quando morrer quero que digam "Olha, morreu um gajo porreiro!" E a Simone? Como quer ser recordada?

"Epá, ela até jogava bowling com os netos!"

Bowling?

Sim, sim ensinei-os a todos a jogar. Gostava de ser recordada como uma pessoa normalíssima e não pelo facto de ter tido prémios. Não me deitem nada para o lixo! Quero que os meus netos se lembrem de mim como avó. A avó que punha dinheiro no telemóvel, que ia à praia e jantava com eles. Vou querer ser lembrada como a mãe e a avó. O resto? Os outros o dirão.

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